domingo, 9 de outubro de 2011

Gestação mental

Dia desses percebi que o processo de criar uma história é como uma gestação. A história surge um dia na sua cabeça, concebida por algo que se viu, ouviu ou sentiu. Às vezes, mesmo sem se perceber, como se ela fosse enviada pelo Espírito Santo. Não importa como, sua mente já foi fecundada e carrega agora um pequeno embrião literário.
Você pode dar atenção ao feto, nutrindo-o com seus sonhos, perspectivas e lembranças, querendo que ele cresça e se desenvolva. Ou pode escolher ignorá-lo, tentar esquecê-lo, mas ele continua crescendo mesmo assim. Pode acontecer até de ele atrofiar, desnutrido e pequenino, perdendo-se no negrume do inconsciente, pobre história abortada, e você vai levando seu dia-a-dia sem sequer lamentar sua morte.
Conforme a história vai tomando forma, você querendo ou não, o peso dela vai aumentando em sua cabeça e fica cada dia mais difícil carregá-la para onde você for. Não importa o que você esteja fazendo, ela consome seus pensamentos o tempo todo, tirando sua concentração, se remexendo e chutando sem parar no seu cérebro.
Até que chega o momento em que você não aguenta mais e resolve trazê-la à vida de uma vez. O parto de uma história é suado. É a hora em que todo o esforço deve ser investido na escolha das palavras, em sua colocação nas frases, no uso dos recursos linguísticos. Transformar ideias em símbolos exige ponderação, paciência, sabedoria, e é um trabalho tão hercúleo quanto transformar energia em matéria.
Enfim, o rebento nasce! Depois de toda dedicação e cuidado da gravidez, e do suor e sangue para dar-lhe à luz, resta agora contemplar o filho amado, enchendo-o de mimos, como todo pai/mãe coruja...

P.S.: Claro que milhões de pessoas antes e depois de mim podem falar sobre isso com muito mais propriedade. Longe de mim querer ser comparável a elas.

domingo, 2 de outubro de 2011

Uma história de Möbius

Eu acordei no meio da noite. Não conseguia mais dormir. Mas eu sabia que havia alguma presença no meu quarto. Eu a percebia com um sentido que não sabia que possuía, até então.
Eu não tinha coragem de me mexer. Demorou muito para me convencer a abrir os olhos. Parecia que tudo estava quieto, mas eu tinha certeza que alguma coisa se movia ali no canto. Era como se as sombras brincassem com elas mesmas, rodopiando e cantando, cirandando de mãos dadas. Quase dava pra ouvir sua canção de júbilo.
E o mais estranho foi minha ausência de estranheza...
Não sei como, mas sei que aquilo tocou em mim. E soube também, de um modo ou de outro, que naquele momento eu estava morto.
Além disso, eu não sabia de muita coisa mais. Quase não sabia quem eu era. Tinha a vaga consciência de ter estado em épocas longínquas e espaços infinitos, mas não conseguia precisar o aqui e o agora.
Mas tinha a nítida lembrança de ter estado em um quarto escuro. Sabia que era um quarto, pois havia uma cama e uma pessoa dormindo nela. Acho que a acordei, porque ela olhou direto para mim.
Oh, que dó! Havia tanta dor e desespero naqueles olhos. Tendo presenciado tanta coisa Universo afora, eu nunca havia contemplado uma alma se contorcendo tanto em agonia. Uma pessoa que sofria tanto em viver, que não pude me manter impassível.
Me senti na obrigação de lhe proporcionar algum alívio, um meio de esquecer o peso da vida e se sentir livre de todo o sofrimento.
Com amor e ternura, eu o toquei em solidariedade.
E soube, de um modo ou de outro, que naquele momento eu estava morto.

P.S.: Sempre achei divertido o anel de Möbius, mas foi Neil Gaiman quem me demonstrou seu sentido narrativo em seu conto "Os Outros", e sim, este conto foi muito inspirado no dele e surgiu, da mesma forma, muito imprevisivelmente. "Os Outros" encontra-se na coletânea "Coisas Frágeis 2".