domingo, 2 de outubro de 2011

Uma história de Möbius

Eu acordei no meio da noite. Não conseguia mais dormir. Mas eu sabia que havia alguma presença no meu quarto. Eu a percebia com um sentido que não sabia que possuía, até então.
Eu não tinha coragem de me mexer. Demorou muito para me convencer a abrir os olhos. Parecia que tudo estava quieto, mas eu tinha certeza que alguma coisa se movia ali no canto. Era como se as sombras brincassem com elas mesmas, rodopiando e cantando, cirandando de mãos dadas. Quase dava pra ouvir sua canção de júbilo.
E o mais estranho foi minha ausência de estranheza...
Não sei como, mas sei que aquilo tocou em mim. E soube também, de um modo ou de outro, que naquele momento eu estava morto.
Além disso, eu não sabia de muita coisa mais. Quase não sabia quem eu era. Tinha a vaga consciência de ter estado em épocas longínquas e espaços infinitos, mas não conseguia precisar o aqui e o agora.
Mas tinha a nítida lembrança de ter estado em um quarto escuro. Sabia que era um quarto, pois havia uma cama e uma pessoa dormindo nela. Acho que a acordei, porque ela olhou direto para mim.
Oh, que dó! Havia tanta dor e desespero naqueles olhos. Tendo presenciado tanta coisa Universo afora, eu nunca havia contemplado uma alma se contorcendo tanto em agonia. Uma pessoa que sofria tanto em viver, que não pude me manter impassível.
Me senti na obrigação de lhe proporcionar algum alívio, um meio de esquecer o peso da vida e se sentir livre de todo o sofrimento.
Com amor e ternura, eu o toquei em solidariedade.
E soube, de um modo ou de outro, que naquele momento eu estava morto.

P.S.: Sempre achei divertido o anel de Möbius, mas foi Neil Gaiman quem me demonstrou seu sentido narrativo em seu conto "Os Outros", e sim, este conto foi muito inspirado no dele e surgiu, da mesma forma, muito imprevisivelmente. "Os Outros" encontra-se na coletânea "Coisas Frágeis 2".

3 comentários:

  1. Muito legal o texto, Delano, intenso e dramático.

    "Quase não sabia quem eu era. Tinha a vaga consciência de ter estado em épocas longínquas e espaços infinitos, mas não conseguia precisar o aqui e o agora." é meu trecho preferido. Parece um pensamento vindo direto da alma recém-liberta.

    Abraço

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  2. Fico muito orgulhoso com seu comentário, Sandro, pois foi essa minha intenção.
    E muito obrigado pelos elogios!

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  3. Seus contos sempre nos fazem viajar com o personagem! Muito bom!

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