segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Lembranças em presente


Nossa! Mas que noite linda! O vento sopra de leve, brincando com as folhas, e a grama acaricia meus pés descalços... Tudo é tão bom! Sinto-me em paz, em equilíbrio. Gostei muito desta praça; embora ela seja muito bonita durante o dia, com as crianças brincando e as pessoas passeando, conversando felizes, sua beleza não se perde à noite, apenas se modifica, residindo no mistério que a escuridão traz; é difícil encontrar um lugar assim no meio de uma metrópole, que traga tanta alegria interior e calma.
Respiro com prazer o ar fresco que o vento me traz e é como se a cada nova inspiração eu renascesse; o farfalhar das árvores parece me convidar para dançar com elas, como se fosse uma música; a Lua minguante sorri para mim e eu retribuo o sorriso como se fôssemos velhas amigas. Ah, como é bom estar em harmonia com a vida, a natureza! Sinto-me parte do cosmo, não um ser isolado que não consegue se ver como um fio na trama da realidade.
Vou andando sem prestar atenção no caminho que faço, e de repente vejo-me em frente a uma grande árvore, bem robusta e antiga; seu grosso caule trás grandes cicatrizes de galhos podados há muito tempo. Os galhos remanescentes são muito altos, inacessíveis... mas não para mim. Um pequeno esforço, um grande salto e estou trepada num dos galhos mais abaixo; vou galgando os outros ramos até ficar bem no centro da copa, totalmente cercada por um domo de infinitas folhas. Sentada aqui, posso sentir sobre mim todo o peso da idade desta árvore; sinto-me pequena e frágil e que minha vida não vale nada diante da vida deste imponente ser; abraço-me a seu caule e me vem a sensação de que a própria Terra acolheu-me em seus braços para me ninar e proteger. Que histórias esta árvore teria para contar? Que segredos ela guarda bem em seu cerne? É uma curiosidade à qual não consigo resistir... não numa noite como esta.
Pego minha pequena faca ritual e faço um furo em seu tronco, fazendo a seiva aflorar.
-Desculpe-me por essa pequena ferida, minha amiga, mas gostaria de dividir nossos segredos, se não se importa.
Talho levemente, então, a palma de minha mão e a coloco sobre o ferimento da árvore; meu sangue e sua seiva se misturam e nossos espíritos entram em contato e tornam-se um só. Perco minha noção de identidade, não mais me vejo como eu; sou invadida por uma torrente de lembranças antigas que se seguem rápida e desordenadamente.
Mas, com certo esforço, consigo discernir que fui plantada há muito tempo, com a esperança de que fosse uma grande árvore. Tamanho foi o carinho daqueles que cuidaram de mim na fase mais crítica de minha vida, que prometi a mim mesma me esforçar ao máximo para não desapontá-los; a cada dia que passava, esticava-me tudo o que podia em direção ao céu. Logo, meu tamanho já atraía crianças, que brincavam ao meu redor, e enamorados, que juravam amor eterno à minha sombra e entalhavam sua iniciais em meu tronco, pequenos arranhões que me enchiam de alegria. E aquilo tudo me deixava muito realizada.
Isso sem falar do coro de dezenas de passarinhos celebrando cada amanhecer. Lembro-me de cada um deles, desde que eram ovinhos, passando pelos ninhos que fizeram em mim, até o momento em que voltaram para o seio da Terra, fechando o eterno ciclo da vida.
As coisas ao meu redor foram mudando. Os raios do sol agora têm que se esforçar para atingir minhas folhas, em meio a tantas estruturas altas de concreto, e já não há mais tantos passarinhos para comemorar quando eles chegam. O asfalto cobre a terra e não há mais tanta água no solo para eu sugar até a ponta dos galhos. O ar é tão pesado e imundo que quase não consigo respirá-lo. E as pessoas... Bem, quase ninguém se importa mais com quanta sombra eu faço ou deixo de fazer.
Um dia vieram homens que cortaram meus ramos mais antigos e robustos por motivos banais; muito sangrei e adoeci mortalmente. Senti que iria morrer. Lembrei-me de minha promessa e me perguntei se ainda valia a pena me esforçar para cumpri-la. E percebi que minha promessa agora era um desafio; um desafio à apatia e falta de percepção das pessoas. A maioria delas não ligava mais para o beneficio que eu podia lhe dar; pois eu ia fazer-lhe ligar dando o melhor de mim! Dirigi todas as minhas forças para aumentar minha copa. Aos poucos, a ferida sarou e a doença passou. E eu continuo me esforçando para crescer mais e mais, pois sei que quanto maior for a sombra que produzo, mais crianças brincarão, mais apaixonados se prometerão, mais trabalhadores descansarão seus músculos, mais pensadores refinarão suas idéias...


E mais feliz eu serei.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Citação do dia

"Já percebeu como você encontra uma jovem no auge da beleza, com um rosto capaz de arrancar as próprias estrelas do céu, e um ano depois a descobre fedendo a leite e merda de criança, e fica imaginando como pôde achá-la tão bonita? Os bebês fazem isso com as mulheres, por isso olhe para ela, olhe agora, porque ela nunca mais será tão linda."
Bernard Cornwell
Fato impossível de ser refutado.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Neil Gaiman e o Livro Livre


Coletiva na FLIP 2008.
"Da minha perspectiva o inimigo não é a idéia de que as pessoas estão lendo livros de graça. Ou lendo na internet de graça. Da minha perspectiva o inimigo é as pessoas não lerem."


Sim, eu sei que é um tema polêmico pra caramba, e blábláblá... Mas não se pode negar que há uma certa verdade perturbadora no que Mestre Gaiman diz.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Atestados

Você percebe que está à beira do desespero quando pede ajuda ao seu gato.
E percebe que já mergulhou na loucura quando ele responde.

Despertar

Sabe aquele momento em que você caminha, vagaroso, pelo reino de Morpheu, abrindo caminho pelas brumas do sono e, de repente, percebe que está acordado?
Pois é... é o pior momento do dia.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011











Essa dor que não cessa
Essa ferida que não cura
Essa úlcera dentro de mim
que não para de sangrar

Todos os dias eu choro
Todas as noites eu grito

Mas não importa o quanto eu busque
o quanto eu implore
o quanto eu me contorça em desespero
No fundo eu sei que não há solução

Tem noites em que...


Tem noites em que o grito quer escapar.
As lágrimas fazem pressão pra sair.
E eu tenho vontade de chorar por mim mesmo.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Sobre a loucura

Eu sempre achei que a loucura fosse apenas uma maneira pouco ortodoxa de interpretar as coisas do mundo. Pra mim, um louco era somente alguém que não entendia as coisas do mesmo ponto de vista que a maioria. (Ressalto aqui que estou falando de distúrbios psicológicos, e não psiquiátricos).
Ora, eu mesmo fui chamado de louco a vida inteira por esse motivo. Quando criança, não gostava de fazer muitas coisas que os outros pequenos faziam e não me divertia com as atividades dos meus familiares, e nenhum dos meus parentes ou amiguinhos hesitavam em exclamar "Esse menino é todo doido!" quando eu alguma vez negava ir à praia ou jogar bola na rua.
Quando adolesci, por vários motivos comecei a questionar tudo ao meu redor. Foram anos chegando a conclusões perturbadoras acerca de vários paradigmas sociais. E não me lembro, nessa época, de nenhuma vez em que as compartilhei e vi uma reação diferente do escárnio, desdém, repulsa ou um risinho ridículo (vale lembrar que isso acontece até hoje). As pessoas repetiam com tanta frequência e veemência que eu era perturbado, que eu simplesmente passei a aceitar isso. Não no sentido ruim, claro. Compreendi que minha loucura não passava de uma ruptura dos padrões, que as pessoas taxavam de loucura por serem  incapazes de levar a sério suas consequências, e nunca me envergonhei ou lutei contra ela.
Tipo, como disse Caio Fernando Abreu: "Loucura, eu penso, é sempre um extremo de lucidez. Um limite insuportável."
Mas hoje creio que começo a arranhar o verdadeiro significado da insanidade. Pois embora tenha certeza de que minha cabeça seguia padrões muito estranhos, ela ainda seguia padrões. Mas uma mente perturbada não apenas funciona de maneira diferente; ela chega a não funcionar bem sob certo aspecto. Parte dela se sente tão torturada por sofrimentos, que deixa de operar suas funções corretamente. Certos raciocínios não conseguem se completar, se perdendo no percurso, os pensamentos ficam caóticos e você não consegue pensar em algumas coisas com a clareza que queria. Uma névoa turva sua cabeça permanentemente e você não consegue mais julgar certos fatos com a certeza de antes. A natureza exata do problema depende de como a mente de cada um é posta em prova.
Hoje sei que estou me aprofundando em um outro nível de insanidade. Mas o que mais me perturba é aquela velha pergunta: "um louco sabe que é louco?"

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Tem noites em que...




Tem dias em que as noites são mais frias.
Tem noites em que o dia não termina.
E eu lembro, com medo, do dia de amanhã.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Mago: crônica

Joana virou rápido a cabeça para trás e, com terror no coração, viu que o tecnocrata diminuía a distância entre os dois a cada passo. Já havia corrido muito, tentando despistar seu perseguidor passando por ruas pequenas e vielas escuras que conhecia tão bem, mas o homem simplesmente corria demais e estava sempre logo atrás dela. Agora estava exausta, pálida, cada músculo mal aguentando a próxima contração e sem idéia do que fazer. Estava perto da sede da cabala, mas não podia ir até lá com ele em seu encalço. Começava a se entregar ao desespero.
Virando uma esquina, porém, seu cérebro raciocinou uma nova esperança: alguns metros à frente, havia um hidrante. Só precisava aguentar a corrida um pouco mais.
- Está bem enferrujado, mas a chance dele estourar ainda é muito pequena. - ela pensou.
Logo atrás, ela ouviu uma arma sendo engatilhada. Não podia mais esperar: a ferrugem não suportou mais a pressão da água e a tampa do hidrante foi arremessada na direção de Joana com uma velocidade assustadora, mas ela viu o pedaço de metal aproximar-se lentamente, acompanhado de milhões de gotas d'água flutuando leves no ar. Pisou, então, sobre a tampa, o que lhe deu impulso para um grande salto. Pensou que podia respirar aliviada quando, ainda no ar, sentiu algo perfurando suas costas. Olhando para baixo, viu uma bala e vários respingos de sangue saindo preguiçosamente de sua barriga. Pouco depois, o som do disparo propagou-se devagar pelo ar, grave, retumbante, quase eterno e ferindo os tímpanos de Joana.
Ela se esforçou para manter sua mente concentrada, mas a dor e o susto fizeram o mundo voltar a sua velocidade normal. A dor dentro de si a impediu de amortecer bem a queda, e ela torceu o pé ao atingir o chão, desajeitada. Caída, parte da água do hidrante jorrando sobre ela, olhou para trás e viu que seu plano havia dado certo: a tampa do hidrante ricocheteou no chão quando foi pisada e acertou o queixo do tecnocrata. Sua mandíbula estava despedaçada e ele jazia inconsciente no chão.
Joana tentou sorrir, mas não conseguiu: sentiu o dano em suas entranhas e a vista embaçou. Levantou-se trêmula, a mão sobre o ferimento tentando estancar o sangue, mas ela sabia que não podia impedir que ele continuasse inundando dentro de seu corpo. Tinha uns 2 km de caminhada até a sede da cabala, e enquanto mancava até lá pensava se seria mais provável morrer de hemorragia ou infecção...

Algum dia eu espero escrever o que houve a Joana e porque ela estava sendo perseguida.