
Respiro com prazer o ar fresco que o vento me traz e é como se a cada nova inspiração eu renascesse; o farfalhar das árvores parece me convidar para dançar com elas, como se fosse uma música; a Lua minguante sorri para mim e eu retribuo o sorriso como se fôssemos velhas amigas. Ah, como é bom estar em harmonia com a vida, a natureza! Sinto-me parte do cosmo, não um ser isolado que não consegue se ver como um fio na trama da realidade.

Pego minha pequena faca ritual e faço um furo em seu tronco, fazendo a seiva aflorar.
-Desculpe-me por essa pequena ferida, minha amiga, mas gostaria de dividir nossos segredos, se não se importa.
Talho levemente, então, a palma de minha mão e a coloco sobre o ferimento da árvore; meu sangue e sua seiva se misturam e nossos espíritos entram em contato e tornam-se um só. Perco minha noção de identidade, não mais me vejo como eu; sou invadida por uma torrente de lembranças antigas que se seguem rápida e desordenadamente.
Mas, com certo esforço, consigo discernir que fui plantada há muito tempo, com a esperança de que fosse uma grande árvore. Tamanho foi o carinho daqueles que cuidaram de mim na fase mais crítica de minha vida, que prometi a mim mesma me esforçar ao máximo para não desapontá-los; a cada dia que passava, esticava-me tudo o que podia em direção ao céu. Logo, meu tamanho já atraía crianças, que brincavam ao meu redor, e enamorados, que juravam amor eterno à minha sombra e entalhavam sua iniciais em meu tronco, pequenos arranhões que me enchiam de alegria. E aquilo tudo me deixava muito realizada.
Isso sem falar do coro de dezenas de passarinhos celebrando cada amanhecer. Lembro-me de cada um deles, desde que eram ovinhos, passando pelos ninhos que fizeram em mim, até o momento em que voltaram para o seio da Terra, fechando o eterno ciclo da vida.
As coisas ao meu redor foram mudando. Os raios do sol agora têm que se esforçar para atingir minhas folhas, em meio a tantas estruturas altas de concreto, e já não há mais tantos passarinhos para comemorar quando eles chegam. O asfalto cobre a terra e não há mais tanta água no solo para eu sugar até a ponta dos galhos. O ar é tão pesado e imundo que quase não consigo respirá-lo. E as pessoas... Bem, quase ninguém se importa mais com quanta sombra eu faço ou deixo de fazer.

E mais feliz eu serei.